Demorei muito tempo para decidir escrever este texto, mas a sua necessidade tornou-se óbvia pouco depois de publicar o meu livro das Orquídeas Silvestres da Arrábida.
Se/quando um dia vier a publicar um novo livro de orquídeas, este tipo de conteúdo será obrigatório.
Até que ponto a observação de orquídeas interfere no bem estar das plantas?
Até onde compensa com a observação, e o eventual conhecimento que daí advenha, o potencial de prejudicar as plantas em si?
Estas são as principais questões que coloco e que, obviamente, não se aplicam apenas às orquídeas silvestres mas a todos os outros seres silvestres.
E a resposta a que cheguei, passível de ajustes futuros, é que temos que nos colocar na perspectiva das orquídeas!
Sim, pode ser complicado pensar nesses termos, mas a ideia é: “Qual o benefício para as orquídeas quando se parte para as observar?”
E especialmente se estes benefícios compensam os potenciais prejuízos.
As plantas em geral têm uma desvantagem enorme em relação aos animais porque o seu funcionamento e a sua biologia, são radicalmente diferentes da nossa. Numa escala de importância estão muitas vezes, na percepção humana, mais próximos do mundo mineral que do mundo dos animais. Não sentem, não faz mal que se cortem, se usem, ou simplesmente se pisem. São descartáveis. E mesmo para quem olha para elas com mais atenção esse paradigma está sempre subjacente.
(…) não, a generalidade das pessoas não tem o direito inato de conhecer todas as localizações de todas as plantas mais raras e vulneráveis (…)
Façamos a ponte então com os animais, as aves em particular, um ponto intermédio, e que são um assunto de muitos amigos meus.
Retirado do recém publicado livro de Helder Costa e Domingos Leitão, “Onde Observar Aves na Região de Lisboa”, temos o seguinte:
A observação de aves é uma atividade que se desenvolve em contacto com a natureza e que se deve basear no respeito não só pelas aves mas também pelo ambiente e pelos outros. Nessa medida, há um conjunto de regras básicas (…)
A mais importante, sem dúvida, é que o bem-estar das aves deve estar acima de tudo. Quer isto dizer que uma boa observação ou uma boa fotografia não justificam que se cause perturbação desnecessária que possa pôr em risco a segurança das aves ou alterar o seu comportamento normal, nem tão pouco justifica que se modifique de alguma forma o habitat onde as aves se encontram.
Efectivamente muitos locais de observação de aves têm abrigos para escudar a aves da presença humana e mesmo assim o acesso é condicionado, por vezes é mesmo proibido. E a necessidade compreende-se facilmente quando estamos perante aves ameaçadas, raras ou em que o conjunto do ecossistema detenha um diversidade que é importante preservar.
Será assim tão diferente para as plantas?
Ainda assim não é difícil encontrar pessoas ofendidas, como muito recentemente vi numa publicação nas redes sociais onde a LPN e o ICNF apelavam a que não se divulgassem os locais onde existe e se está a recuperar a Águia-imperial, porque as localizações de espécies ameaçadas lhes estavam a ser escondidam e se achavam com todo o direito de as conhecer.
Há não muito tempo, alguém avistou uma ave limícola rara numa zona da costa portuguesa. A informação espalhou-se como fogo no capim e, no mesmo dia, algumas dezenas de pessoas foram ao local para fotografar a ave. A excursão continuou nos dias a seguir. Ainda que em geral essas pessoas se mantenham a alguma distância (não são todas) e fotografem com tele-objectivas, que impacte terá isso para uma ave que acaba de tentar estabelecer um novo local de paragem ou mesmo nidificação? Que benefício essa acção traz para a ave? O que vai resultar de tanta actividade para a preservação ou manutenção da espécie?
Voltemos por um instante à Águia-imperial, um animal extremamente sensível ao vasto habitat que precisa para se sentir em casa? Que ganho adicional existe para o animal que mais um “caçador de troféus” vá obter a sua fotografia? E que prejuízo poderá advir daí?
Sim, eu sei que os caçadores de troféus de hoje, os que são bem vistos, não procuram cabeças de animais para pendurar na parede ou corpos para empalhar. Mas até onde pode ir a acção de um caçador de troféus fotográficos, mesmo não destruindo directamente com a sua “arma” de obtenção dos ditos?
Que benefício representa ele para o objecto do seu desejo?
Voltando então às orquídeas.
Foi para mim uma satisfação enorme quando percebi que o meu livro estava a trazer ao tema imensos interessados e a interessar novas pessoas no assunto.
E pouco depois foi uma enorme frustração perceber, em casos pontuais, mas não únicos, que algumas plantas estavam a ser claramente prejudicadas com a nova atenção de que eram alvo.
Será afinal que vale a pena? Será que estou a fazer mais pela preservação destas plantas ou por outro lado estou a colocar em risco algumas das mais raras e vulneráveis?
Que não se coloque em dúvida que eu sou defensor acérrimo de que a responsabilidade, os bons comportamentos, a redução da negligência no tratamento e mesmo algumas boas decisões a nível mais elevado partem do conhecimento das coisas de que estamos a tratar.
Tenho na entrada do meu livro:
No final, vamos preservar apenas o que amamos, vamos amar apenas o que entendemos, e vamos entender apenas o que nos for ensinado.
Baba Dioum
Mas depois de se conhecerem as orquídeas em geral, depois de se conhecer a grande maioria das espécies e saber um pouco sobre como funcionam e do que dependem, que benefício adicional existe em se conhecerem todas as orquídeas? Em conseguir encontrar e fotografar as mais raras de todas? O que se vai fazer com esse “conhecimento” final e muito incremental? E não se esqueçam que estou a esforçar-me por ver isto da perspectiva das plantas.
Dos anos que faço observação de orquídeas fui encontrando vários potenciais prejuízos para as mesmas dessa aparentemente inócua actividade.
Num passeio há sempre pessoas descuidadas que, sem querer, pisam as plantas. Há sempre crianças pouco disciplinadas que “pintam a manta”, neste caso espezinham, mais do que deviam. Há animais de companhia que obviamente não compreendem para além da curiosidade que lhes desperta a curiosidade dos donos.
Depois há as pessoas mais interessadas na protecção. Acreditem, dentro dessas pessoas também há pessoas descuidadas e distraídas. Já vi isso tantas vezes que é assustador.
A seguir há o simples pisoteamento das plantas, das outras plantas, nem me refiro às orquídeas. As orquídeas precisam não só da protecção mecânica das plantas que as rodeiam (contra intempéries ou contra a passagem de seres humanos ou animais que naturalmente seguem percursos pisoteados em detrimento de zonas de vegetação “inteira”) como efectivamente precisam delas para a sua sobrevivência em termos biológicos, como bem saberá quem leu o meu livro. Tudo isto para além do óbvio de também as outras plantas serem importantes, algumas se calhar até mais vulneráveis que as próprias orquídeas.
De seguida há outro factor de que fui tomando conhecimento: o roubo de orquídeas silvestres, especialmente de plantas raras, dos seus habitats naturais. Seja para colocar no jardim ou para vender o outro motivo qualquer.
Durante este ano, em que lancei o meu livro, foram várias as situações em que vi, como com as aves acima, romarias para observação de algumas plantas que resultaram na sua destruição ou quase destruição. A informação precisa de localizações, que oficialmente é reservada, passa rapidamente entre as gigantescas redes de amigos e conhecidos e os caçadores de troféus fazem centenas de quilómetros para conseguirem as suas fotografias. E o que ganham as orquídeas com isso?
Áreas completamente espezinhadas de pessoas que procuravam aquela orquídea rara e, sem o saberem, já a pisaram. Fotógrafos que, sem o abrigo (que existe para as aves) para escudar as plantas e os seus ecossistemas dos mesmos, não pensam sequer duas vezes em calcar todas as “ervas” e arbustos em volta para conseguirem a fotografia perfeita. Carros a passar directamente por cima das mesmas orquídeas porque lhes disseram que estavam ali algures e, por azar, o local escolhido para parar o prémio escondeu-lhes o prémio, obviamente já entretanto destruído pelos pneus.
Então, o que eu penso actualmente do assunto torna-se mais simples.
Sim, a generalidade das pessoas tem todo o direito de conhecer as orquídeas silvestres. Em populações que não corram riscos especiais algum prejuízo para as mesmas é claramente compensado pelo conhecimento e sensibilização que é passado e pelos cuidados e resultados futuros em que isso vai resultar. Em áreas urbanas especialmente onde nenhuma segurança é garantida, mesmo que ninguém saiba das plantas, a observação de orquídeas é muito benéfica.
Mas não, a generalidade das pessoas não tem o direito inato de conhecer todas as localizações de todas as plantas mais raras e vulneráveis e isso inclui os caçadores de troféus fotográficos.
Pretende procurá-las por si mesmo? Excelente, aconselho a que o faça como eu o fiz/faço. O esforço para conseguir encontrar algumas raridades mais facilmente faz pensar no prejuízo que se causaria se os locais fossem comummente conhecidos. A não ser que se queira alguma notoriedade de ter feito a descoberta e se queira a popularidade de ser conhecido como alguém que sabe destas coisas, passa informação e tem muitos amigos por causa disso. Mesmo que essa atitude seja inconsciente e não seja mal intencionada.
Mas se é só isso, pergunto novamente, que benefício vem para uma orquídea única e vulnerável ser visitada e o seu habitat vilipendiado, se não ela própria, por uma multidão de observadores?
Seja como for que descobriu a localização desse ser vulnerável, a partir da altura em que tem essa informação essa planta passa a ser também, directamente, responsabilidade sua.
Os seus amigos são tão responsáveis como você? São mesmo? Como é que pode ter a certeza que, com as redes de contactos de hoje em dia, que se multiplicam em milhares de membros, não há uma pessoa menos responsável? Como é que pode ter a certeza que essa informação não vai parar a um desses coleccionadores, não de fotografias, mas mesmo das plantas ou de alguém que tem acesso a mercado para as vender? Como pode ter a certeza que centenas de pessoas não vão de certeza prejudicar, mesmo que sem intenção, a orquídea, ou a ave, ou outra coisa qualquer assim cobiçada?
Pois eu tenho a certeza que o prejuízo vai acontecer.
O equilíbrio entre a divulgação total da informação e o benefício/prejuízo para a natureza, está muito antes de se chegar a este ponto.